sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Sobre encontrar-se na pele de outrem

 A xícara de café intacta esfria em cima da mesa pintada de branco, junto com as maçãs cortadas em pequenos cubos desproporcionais que escurecem. A janela está aberta e os móveis envoltos em véu de poeira translúcida. O telefone, tão imundo quanto o resto do ambiente, toca incessantemente. Três batidas na porta: ninguém responde. Um estrondo reverbera pelo prédio com o barulho do pontapé ao violar a casa. Respiração entrecortada. Um suspiro. Pratos são quebrados, gavetas violadas, cartas jogadas a esmo pelo chão. Um sorriso despenca do rosto do estranho invasor ao notar uma foto em cima da arca de madeira escura. Usa o dedo indicador como pano para escavar a poeira acumulada no vidro do porta-retrato e assopra os excessos, como um ourives detalhando sua peça única. Um homem jovem. Não devia ter nem trinta anos. Enfia o objeto no casaco cinza-chumbo e se arrasta até a saída. Batimentos acelerados. Cheiro de medo. Se vira em direção ao coração da casa e espreita delicadamente. Um. Dois. Três. Seis passos. Tosse seca. Caminha mais um pouco. Revira a casa. Engole a saliva que desce ácida até o estômago. Banheiro. Um espelho também sujo. Abre a mão e tenta limpar a sujeira. Repara nas veias saltadas e nas pintas decoradas pelo tempo. Estica o pescoço para frente. Rugas. Muitas delas ornamentam seu rosto. Assopra. Seu hálito acre o faz tremer nas bases. Uma lágrima percorre com dificuldade sua pele escamosa - uma rachadura para cada ano de vida que o enlaça. Agora sabe que seu único medo é olhar para si mesmo. Encarar que acabou. Viveu uma só vida. Encontrou a si mesmo. E se perdeu. 

domingo, 1 de setembro de 2013

Um copo de poesia e um maço de sorrisos

 Olhei para a frente, para imensidão azul, mesclada de pedras grandes e cinzentas, quentes, idosas, corroídas pelo tempo e pelos olhos que tanto olharam aquela paisagem. Vida gasta, diziam. Eu quero gastar minha vida com que o vento me trouxer e com a força de poder contornar a tempestade que tentar se instalar no meu ninho interno. Se não tomar cuidado, as risadas se transformam em apatia, as mãos dadas se transformam em pêndulos ao relento, os olhares de soslaio viram um esgar de antipatia. Quero ter a liberdade e a paz de admirar por horas e horas a mesma paisagem e em seguida, ao cansar dela, caminhar para onde for, em busca de um pouco de vozes e uma bebida quente. Quero ter a ousadia de mudar o rumo das conversas, embaralhar palavras sóbria, embebedar meu mundo particular de poesia e deixá-lo transbordar o copo para quem se aproximar. 
 Voltei o olhar para a paisagem e não cansei daquela simplicidade que valeu rabiscos no meu caderno. Deixei que o sol se pusesse para que eu fosse capaz de me desfazer daquela sensação de eternidade e de nebulosidade na voz ao retomar a fala sucinta. Eu só poderia balbuciar seu nome, escrito na areia que aquelas pedras seriam um dia...