segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Estranho natural

 A árvore era pouco a pouco desfolhada pela gravidade e deixava um tapete de tonalidades mistas, entre o ocre e o laranja, e pintava com tons pastéis a serenidade guardada em um âmago em queda e composição. A luz incidia sobre os olhos escuros causando certa repulsa e obrigando-os a permanecerem espremidos em formato de lua minguante, quase permitindo um abraço entre os cílios que faziam cócegas quando pousados no pescoço alheio, num abrir e fechar de pálpebras delicado. Resquícios de cinzas da fogueira formavam um círculo fraco, porém gracioso. Tocos de madeira estavam posicionados um ao lado do outro e serviram de banco para aqueles que ali se aninharam numa noite silenciosa, púrpura e invisível. Tocou um a um com a ponta dos dedos e levou-os ao nariz, numa tentativa vã de captar as conversas e notas embriagadas do violão. Fechou os olhos e se deixou cair sobre as folhas, causando seu farfalhar que amorteceu a queda. Em contato com a terra era ela, eles e ninguém. A ligação era imediata e irremediável. Era só paz e sintonia. 

domingo, 22 de dezembro de 2013

Entrever

 Seus passos tiquetaqueiam no assoalho de madeira e deslizam em singelos rodopios de leveza, enquanto ela caminha pelos aposentos, vestida apenas com uma camisa masculina que, larga, desliza por seus ombros desnudos e permite entrever seu colo resplandecente de gotículas de água. Seu sorriso é sutil e seu riso é fácil, ainda mais quando esbarram seus olhares no meio da madrugada insone, entre o deslizar das mãos e o som de um banjo ao fundo. Descrever o toque como algo mágico seria clichê e insuficiente, porque correntes elétricas perpassam seus corpos deveras agitados em um segundo e imensuravelmente entregues no outro, sem o respaldo de palavras possivelmente desconexas, apenas com o auxílio da respiração ofegante que corta o silêncio do ambiente. O quarto é envolto em névoa fina e quente, envolvendo cada centímetro de distância e transformando em presença não comedida. Eles se movem em oscilações perpétuas e azuladas, perscrutando pensamentos à primeira luz do dia. 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Cadência furtada

 As ruelas estreitas eram enfeitadas por casebres multicoloridos e colados uns aos outros. O que dava forma e graça ao ambiente era a não linearidade das construções, que ondulavam em tamanhos diversos, em subidas e descidas, em ladrilhos descontínuos e telhas fora do lugar. Era um dia de sol escaldante, mas não chegava a doer a vista, já que os olhos estavam blindados de tamanha beleza proveniente da quentura da tarde alaranjada. Enquanto nossas peles se desfaziam em lamúrias e sussurros ao pé do ouvido, nossos pés oscilavam entre o longe e o perto, em movimentos desestruturados e cadentes, em uma melodia transcendente, e minha imaginação crepitava ao provocar sismos de arrepios na nuca. Eu me perderia entre os caminhos se fosse para esbarrar no seu calor outra vez. 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Realidade negada

 Pupilas dilatadas e excessivamente encobertas por piscadelas na velocidade da luz. Seu aroma flutuando e sendo recolhido por minha percepção aguçada, os poros dilatados, os sorrisos escapando, o tempo e o espaço se mesclando e deixando o relógio avançar - que disparate! As horas se esvaem em segundos desconexos, a distância curta se torna um martírio e um refúgio. As palavras que escapam de minhas mãos me denunciam de fato. A poesia é a melhor forma de mascarar a realidade e negá-la até sua última essência. 

domingo, 15 de dezembro de 2013

Anestesia

 Suas mãos escorregaram e um precipício se abriu entre as faíscas já apagadas que mantivemos um dia nos olhos. O que era paralelo se distorceu para uma torrente desconexa e controversa que emana espasmos de possibilidades já cessadas. O que era linha, agora é destroço e pólvora fria. Aquele abismo, por mais fundo que seja, por mais escuro e fétido, não faz esquecer a trilha coberta de folhas secas e terra batida por onde tanto caminhamos enquanto o orvalho lambia nossas peles adormecidas. Se aqui estou, é porque me anestesio com o que não é mais. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Submundo autofágico


 Tossiu uma tosse tão seca que polvilhou o ambiente com areia branca e pequenas conchas amareladas. Limpou suas mãos na roupa, inundando seu corpo de água ao abrir os olhos novamente. Fingiu dormir e labaredas fulgurantes jorraram de seus ouvidos tão desacostumados a ouvir as vozes externas, já que as internas dominavam sua insanidade. Seu olhar, trôpego, fatigado, coruscava lampejos animalescos e se alimentava dos sorrisos alheios. Sua alma sugava feito bicho cada centímetro do seu próprio corpo que se contorcia em espasmos prazerosos. A pele descamava, os pedaços longos saíam na mão com facilidade, e logo paravam na língua, tilintando, para em seguida serem triturados pelos dentes caiados. Cada mordida de si mesmo deixava seu corpo em carne viva. O fogo consumiu o que não era puro. A pele, um dia, se for reposta, emudecerá a vida. Enquanto isso, apreciar seu próprio gosto é um gozo imensurável. 

domingo, 8 de dezembro de 2013

Descostura

 
 Os destroços ao meu redor indicam a força da pancada. Meu estômago, embrulhado, reclama em busca de algum alimento perdido nas prateleiras do mercado, tão perdido que não se encontra mais entre as latas de ervilhas e molhos de tomate. Minha mente gira em círculos disformes e distorcem minha visão embaçada pelas lágrimas que surgem em cachoeiras ácidas. As mãos, pousadas em meu colo quente e ensanguentado de saudade, se transformam em vultos cinzentos e intocáveis de dor. Meu corpo pende para os lados sem sustentação e a costura já pode ser vista desfiando, definhando, delirando, decodificando a putrefação do interior em ruínas. O silêncio toma conta da minha voz e se despede de você, que se foi navegando rumo ao nada, disfarçado em palavras de desculpas e sentimento de culpa. A covardia foi você a maior parte do tempo. 

sábado, 7 de dezembro de 2013

Crepitar sinfônico

 A faísca, espetada, ondulou em redemoinhos de desilusão dentro de seus olhos. Pedaços de pano rasgados estavam artisticamente espalhados pelo chão arranhado pelos móveis pesados. O rastro líquido cintilava à luz artificial da sala de estar e era um belo convite para um raso mergulho do aroma terno e amargo do querosene. Espiou de soslaio a porta encostada, emitiu um grunhido animalesco e permeado de ódio, deixando escorrer pela lateral da boca um filete esbranquiçado de saliva entardecida, que logo foi espalhado com um movimento horizontal feito pelas costas da mão. Continuou sua empreitada com voracidade, enquanto seu cerne borbulhava os mais incontidos desejos e sua mente balbuciava solenemente. Ficou de cócoras, pincelou o dedo indicador no fluido amarelado e levou ao nariz – fechou os olhos e um sorriso irônico se alastrou por seus sentidos. Levantou com certa dificuldade, sentiu a deliciosa sinfonia do sutil estalar de seus ossos antigos, afastou seu corpo esguio e putrefato do aposento, não sem antes retirar do bolso uma pequena caixa de fósforos. Levou-a aos ouvidos – era movido pela sinestesia anestesiante de qualquer objeto – e hesitou um bocado antes de se permitir abri-la. Quando finalmente caiu em si, seu corpo era muralha incandescente, e ele, em uma satisfação insana, contemplava a si mesmo fora de seu âmago, e se regozijava com o crepitar de sua pele sendo purificada.