quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Fluxo de (in)consciência


Sou uma ideia pairando no ar, apenas um amontoado de palavras e imagens flutuando no éter infinito da ignorância. Meu desassossego é viral e silencioso – uma cãibra constante que me persegue desde o momento em que a consciência da vida me pegou pelos pés da inconstância e me puxou para o abismo da inexistência. Minha realidade existe nas palavras e o ato poético é uma corrente que me envenena e alivia a vista do tédio e da falta de perspectiva.

Narizes, bocas e olhos me entediam. Não consigo conceber a ideia de o nariz estar no lugar exato que ocupa e da boca não estar invertida com os olhos – me agrada muito olhar para baixo sem precisar dobrar tanto o pescoço, gesto esse que me causa uma sensação de dor. Sensação essa que nunca descubro se é real ou existe porque quero que exista. Eu me invento tanto que perco o fio da realidade e me despeço das pessoas, das coisas e dos sonhos que já até esqueci. Sou alma isolada, ilha perpétua e sofro a dor da consciência. Pensar é não viver e porque penso vivo numa corda fina e bamba a caminhar por horas e horas sem cair. Não caio pelo simples motivo de não compreender a ideia da queda e isso me mantém de pé sonambulamente sofrendo uma dor que não é minha.


Tomar consciência do que se faz é um pedido de parada. Quando corro, meus pés inchados e quentes pelo atrito fazem repetidos movimentos que me impulsionam para frente, meus braços relaxados se movem como desejam – não os prendo de maneira alguma. Olho para frente e folhas e mais folhas de um livro aberto são lidas para mim mesma – poemas  sujos e bordados de incertezas. Eu continuo. Não penso no que estou fazendo e não sinto dor alguma. É só por algum segundo retomar a consciência num despertar monstruoso que meus pés ardem, as pernas imploram para interromper, os braços e ombros queimam e a cabeça pende para o infinito chão asfaltado. Eu choro e continuo. Continuo chorando e correndo e respirando e botando um pé na frente do outro. Um pé na frente do outro. Outro pé na frente do outro. Respire e expire. Solte os antebraços. Não retese os ombros. Continuo.  Um, dois, três quatro. Arde. A vida arde tanto e nem todos tem a coragem de parar. Interromper é um ato de coragem. A morte é um ato de coragem. É muito mais fácil continuar em movimento, apesar do cansaço, do que lidar com a parada e o recomeço das ações da vida comum. A corrida é uma tortura que me tira todas as forças e me tira todas as sensações de viver estando viva. Mecanicamente se eu me permitir. E eu me permito sentir a dor até não aguentar mais existir numa redoma de vidro contaminada pela normalidade e pelos pensamentos repetidos. Eu escuto todos os pensamentos ao meu redor e tento fazer com que as pessoas parem de pensar tanto e ao mesmo tempo. Se vocês continuam eu enlouqueço. Febril eu fico enquanto uns contam em mente, outros planejam viagens e tantos outros fazem promessas que só vão cumprir caso os santos encontrem um objeto perdido, que geralmente é uma chave ou um brinco perdido do seu par. Nós somos todos brincos perdidos dos nossos pares porque alguém decidiu inventar que sozinhos ficaríamos solitários. Somos solitários em companhia e seja lá como for. Estaremos sempre sozinhos na consciência e as companhias que nos rodeiam só querem esquecer que apenas esperam sentadas, de pé ou caminhando pela morte. Morte. Nunca temi ouvir e pronunciar essa palavra. Nunca entendi o medo que tantos tem dela. Eu tenho medo do tédio que me cerca diante de mil atividades que preenchem meu dia e deveriam dar conta da minha espera silenciosa, mas não há maneira de fugir uma vez que já entendi o que faço aqui. Busco sentido em todos os terços, tambores, incensos, defumadores, imagens, livros e só a escrita me salva e mata aos poucos. É um veneno do qual eu não posso fugir porque fugir é decretar a sentença de morte. E ainda não morri – ou é ao contrário? 

domingo, 11 de janeiro de 2015

Ancestral

 As batidas dos tambores ribombam com uma cadência certeira para mover a alma. Eu sacudo da direita para a esquerda e de cima para baixo, com alguns tremeliques nas minhas pulseiras repletas de pequeninos pingentes dourados de andorinhas. Agora já posso finalmente ouvir um grave som de acordeão, um daqueles grandes e antigos tocados por mãos calejadas e firmes. Uma coroa de flores dança no topo da minha cabeça e algumas pequenas rebeldes caem no comprimento dos meus cabelos soltos. Enquanto eu rodopio, elas deslizam e acariciam o chão salpicado de papéis coloridos e cinzas dos defumadores de alecrim e alfazema. A fogueira, acesa e flamejante, enrubesce minha tez bronzeada pelo sol do dia inteiro e me faz sentir as gotículas de suor desenhando símbolos indescritíveis nas minhas costas. Enquanto rodopio mais um pouco, elas - as flores, as gotas, as cinzas, as imagens - circulam pelo ambiente e se tornam um só ritual de entendimento. Termino de frente para um choupo antigo, ancestral, uma vó serena e robusta, e me demoro num abraço. Ali, minha energia é repassada e reparada. Minha essência retorna não ao corpo, mas ao espírito jovem e à alma senil, porém guerreira. Somos todas nós árvores fincadas na terra que resistem às intempéries e voltam os olhos para o céu buscando um anúncio de que a paz está por vir um dia...