terça-feira, 31 de março de 2015

Permissão

 Sentei na cadeira de frente para uma mesa branca. O ambiente era estranho e a sensação era familiar - desamparo. A sala fria e branca com algumas pessoas ao redor movendo membros debilitados dos seus corpos frágeis e velhos que rangiam a cada movimento me dava arrepios na espinha e me fazia fechar os olhos para escutar cada craquelar de pele que secava com a temperatura do ar seco e contaminado de partida. Eu era de longe a pessoa mais jovem e sem dúvidas e mais inteira. Eu estava inteira por fora, mas por dentro meus ossos eram cacos de vidro em forma de areia. Eu desmoronava a cada segundo naquele ambiente, eu estava ficando ofegante e inquieta. Sentia coceira sem sentir absolutamente nada. Sentia tudo sem sentir e tudo girava. Rápido, girava. Eu fechei os olhos e me senti numa das manhãs frias de um sonho que já tive viajando. Era frio e eu bebia um chá de ervas frescas para amenizar a solidão. Eu estava como sempre sozinha com meus pensamentos. Era um silêncio de infinitude e eu me questionava quando alguém iria interrompê-lo para que eu pudesse prosseguir a vida pelo menos reclamando de uma distração feita por alguém do mundo exterior. Estava estocada no meu interior e não saía, feito farpa enterrada no dedo indicador. Eu fechei e abri os olhos, mas a sensação não ia embora...Minha única solução, como em todos os momentos, foi sentir. Por pior que fosse, por pior que seja, sentir é a única saída. Então que eu sinta todas as dores e calafrios de uma vez só. Que eu não esteja imune à dor. Que eu apenas sinta estar viva. 

quarta-feira, 25 de março de 2015

Quixoteando

 Caminho pelas ruas do meu bairro, pelas ruas dos bairros que não habito e pelas ruas que desconheço tanto quanto não pertenço. Minha passada é descompassada, ora mais depressa, ora mais devagar, e não há padrão para obedecer, apenas mantenho um ritmo inexistente. Olhos esguios penetram pelas janelas abertas das casas alheias, todas pintadas de um tom diferente, umas com vasos de flores, outras com vista para as televisões ligadas na sala de estar. Eu queria estar ali, em cada uma dessas casas. Meus períodos são tão curtos quanto meus passos e tento alongá-los ao máximo até que me canso de ler linhas longas e as enfeito com um ponto - final? Voltando, eu queria estar ali, em cada uma daquelas casas, onde o conforto exala cheiro de café à tarde, café de todas as qualidades, de todas as intensidades e aromas. Meu impulso inicial é de me convidar para entrar e sentar no sofá perto de uma senhora qualquer e engatar uma conversa gostosa até o cair da tarde, momento esse no qual eu pediria licença e levantaria deixando a xícara e o pires na mesinha de centro e meu coração em mais algum lugar do mundo. Eu me apego às sensações antes de serem sentidas e quando as sinto elas se esvaem feito vapor no espelho do banheiro após um banho quente. Eu perco o fio da razão porque eu vivo literatura vinte e quatro horas por dia - ou seria trinta? Ficção é nomear o mundo e eu vivo ficção, respiro ficção, sou ficção ao dizer meu nome para um estranho na livraria. A literatura é meu sentido de existência e pauto minha vida somente em satisfazê-la integralmente, embora a inércia algumas vezes me pegue pelo pé da preguiça e eu me esvaia em fiapos de ócio improdutivo olhando para o teto. Outras vezes, em dias Quixotescos, saio pelas portas laterais e folheio todos os livros que estão ao meu alcance ao mesmo tempo na mente. Queria eu ter a possibilidade de tornar palavra as sensações que me assaltam no meio da rua e me fazem perder o compasso nunca antes tido. A loucura reside na apropriação das palavras e no sentir sem fim. Eu sinto. Muito. 

segunda-feira, 16 de março de 2015

Voo raso

 Era de longe que ela vinha com asas nos pés e um espiral de incertezas nas mãos pequeninas e sujas com pó de passado. Uma saia longa cobria sua pele alaranjada pelo sol e uma blusa branca caía lindamente por seus ombros salpicados de pintinhas marrons - ela dizia que eram uma constelação de dias de férias. Eu gostava de olhá-la porque ela era de uma fluidez inconstante e tranquila, como seu pudesse sentir, mas não desse tempo de tocar antes que se esvaísse no universo. Via nela pedras e cristais flutuando no éter da curiosidade, ela ria e sorria para o vazio. Acreditava não em deusas e deuses, mas em pássaros e borboletas na barriga. Acreditava sim nos dias ensolarados debaixo de árvores frutíferas e de noites perto da fogueira na areia da praia silenciosa de sentimentos humanos. Eu via nela a mim mesma e todas aquelas dúvidas que surgem na solidão e na pausa, eu poderia ter sido um pouco dela, porém não poderia também. Somos humanos em nossas diferentes formas de ser e sentir que vamos sendo ou deixando de ser. Somos peculiaridades com combinações infinitas e esquisitices escondidas que não sobrevivem à intimidade. Somos singularmente plurais.