segunda-feira, 31 de março de 2014

  O controle escapa das mãos em pequenos grãos de areia. O gosto do imprevisto assusta e escorre ácido pelo estômago embrulhado pela preocupação. Eu me deixei ir, enquanto filetes de lágrimas que um dia pensariam em deslizar pelo meu rosto não são vistos. Não chorei mais. Sua foto estava lá, numa pasta qualquer, em um arquivo sem nome. Tateei a tela e contornei seu rosto com a ponta do dedo indicador. Sorri. Um sorriso leve, sem pretensão de durar muito. Naquele momento meu corpo era tomado por uma espécie de corrente elétrica, de dormência momentânea. As suas palavras ecoaram na minha mente por alguns minutos ininterruptos e eu deitei minha cabeça no travesseiro fino. Engraçado como criamos situações e botamos a culpa na vida. 

terça-feira, 25 de março de 2014

Expediente d'água

Queria eu
ser menos pó
e mais líquido

Fluir 
não levantar 
flutuar
correr
molhar
evaporar

Queria eu 
ser menos
tempo
menos
data
menos ponto
mais pontos
espalhados

segunda-feira, 24 de março de 2014

Transitória mutação

Minhas pequenas mortes
ultrapassam meu caminho
morrer uma vez só
não é o suficiente 
para 
viver

Ser um só
e somente si
não é o suficiente
para
aprender

Acreditar sem duvidar
questionar e responder
não é o suficiente
para 
morrer

domingo, 23 de março de 2014

Seja o que flor

 Eu quero sussurrar ao pé do ouvido uma brisa fresca como quando amanhece no meio do mato. Quero ser a lembrança do cheiro da terra molhada e pisada na infância de ontem à noite. Quero me espreguiçar no seu corpo quente recém saído do forno, me esgueirar pelas beiradas da cama no meio da madrugada e desaguar no seu beijo entre as cortinas claras da sala. Eu poderia. Você poderia. Nós poderíamos ser o futuro do pretérito impreterivelmente hoje, esquecendo o amanhã, os compromissos, a fila do pão, o trabalho rotineiro, o jornal deixado na porta, o rosto lavado, a televisão ligada, o café passado, os sapatos não calçados, as meias sem par na gaveta. Mas deixemos o sorriso breve no rosto, a possibilidade perscrutar no meio da madrugada chuvosa, a janela aberta para o que não é e talvez nunca seja. Se assim flor, assim será.

Incertezas?

Aquele vinho
Ah, todo aquele vinho
entrecortou minha voz
embriagou minhas entranhas
perpetuou incertezas
e das certezas
inquietas
eu tive pena


Seria a ida uma volta?

Antes de ir
vê o que fica
é um nada
nada mais
além do tudo
túmulo
tumulto
fim de resto
que se instala

Funesto
incerto
incesto
correto
político
desonesto
feto
inquieto
insiste em
nascer

Antes de voltar
vê o que vai
e nesse resto
aquele nada
me basta

Gota que vai não volta

Desfalece uma gota
meia gota
não uma gota inteira

Ela tiquetaqueia no assoalho
assoalho de madeira
tão manchado 
das incertezas
das incoerências
incongruências
cotidianas

Suas linhas não têm forma
ora retas
ora parábolas
ora vertem na diagonal
 eu rio
 deságuo
na vertical

terça-feira, 18 de março de 2014

Contínuo

desfaleço
me despeço
para onde eu vou?

reverbero
me desgasto
sem rumo
estou

entre dentes
entrementes
te mastigo
pouco a pouco
absorvo
o que era seu
e já não é

ondulo
me seguro
já não sei
ser o que não 
se é

sábado, 15 de março de 2014

No automático - para onde?

 Aceleração em passos titubeantes. Um pé na frente do outro. Levante sutilmente os joelhos e pouse o calcanhar no chão. Isso, muito bem. Agora uma, duas, quinhentas vezes. Continue. É, só continue. Não desista. Falta só mais um pouco. Vire a esquerda. Agora a direita. Sem pensar muito. Vai desistir, é? 
 E fomos levados para o nada, em busca de coisa alguma, preenchidos pela pressa cotidiana, sem fechar os olhos para ouvir os sons que inundam pequenos pedaços de vida, sem respirar as cores, presos em uma redoma de vidro suja de poeira e dor. A pressa. Ah, a pressa! Ela que perfura nossa veia repleta de humanidade, fazendo jorrar conformação cinza, confusão discreta, arrepios superficiais, toques amenos, luzes opacas, céu engarrafado, palavras pela metade. Da vida eu quero a calmaria e a intensidade, mas não o caminhar automático que cega minha sensibilidade. 

sexta-feira, 7 de março de 2014

Cativeiro dos lúcidos

  Lenços estampados pendiam da parede daquela sótão úmido, mofado e que tudo vê. Eu era só um ponto naquele infinito multicolorido e particular, desconstruindo toda uma vida baseada no egocentrismo matinal que ofuscava meu próprio eu. 
 Consciente da minha finitude, toquei os lenços, um a um, com a ponta dos dedos, horizontalmente, acariciando-os como se fossem minha cria. Eu ria. Ria convulsivamente, descompassadamente, ébria de lucidez. Era engraçado ouvir minha risada alta pela primeira vez. Ali eu percebia que os sentidos tomavam conta da matéria e se desprendiam de mim. Eu já não era eu, era o que sentia. Já não temia ser amorfa no mofo, embora soubesse que não era meu lugar. Aquele cativeiro escuro só pertencia aos que ainda têm algo a perder.