quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Entranhas

 Os lençóis alvos e desarrumados caíam como cascatas até o chão. Soluços longos saíam dos lábios grandes e rachados, as lágrimas pendiam até eles, deslizando pelas fendas até sumirem. O quarto inteiro cheirava a umidade e urina, e era até possível captar um aroma metálico bem de longe. Penetrei o ambiente com passos de garça e me permiti sentar na beirada da cama, ao lado da gorda mulher negra que ribombava forte com seus lamentos chorosos e incessantes. A janela estava fechada, assim como as portas que davam para a varanda. Duas camas, separadas por um criado-mudo empoeirado, eram feitas de jacarandá escuro e antigo. O abajur em cima da mesinha era decorado por fiapos emaranhados de poeira e insetos. Os soluços se mantinham no mesmo ritmo e algumas vezes oscilavam até causar um estrondo de languidez eterna. Olhei para ela e movi minhas sobrancelhas de tal forma que substituíram os gestos que eu faria com as mãos, de maneira a encorajar um desabafo. Nada. Sua face era permeada de tristeza orvalhada, permitia até que eu me visse em seu rosto escorregadio, como em uma poça d'água que refletia meu próprio abismo. Eu olhei para o abismo até que ele me olhasse de volta. Em forma de resposta, imagens flutuaram pelo quarto mofado. Uma criança, seria um menino? Era um pequeno menino loiro. Seus cabelos eram tão lisos quanto um filete de água que caía da cascata do jardim, a cor dele era tão brilhante quanto seus olhos travessos. Ele mantinha uma aura cândida e efêmera. Estava abraçado a um homem bem alto, robusto, com os cabelos tão loiros quanto os seus. Sua pele era avermelhada pelo sol da lavoura. Era pouco mais velho que eu. Ali, o amor exalava feito floresta, em seu estado mais virgem e abundante. Mais imagens surgiram, flutuantes, à minha frente. Outro homem, cujo olhar faiscava e irradiava vitalidade, sorria com a epiderme. Sua substância era fétida. Eu sentia cheiro de podridão. Cheiro de pele queimada. Alguém era jogado pela janela de um quarto que dava para os fundos da propriedade. Um galho segura um pedaço mínimo de uma roupa avermelhada. O menino ouve o barulho oco da queda e corre para averiguar. Sua pulsação se esvai aos poucos, como o final de um festival de fogos. Senti então a quentura de uma substância aquosa em meu ombro esquerdo desnudo. Envolta em um abraço, a mãe amadeirada se debulhava em lembranças de sua vida antiga, quando seu corpo ainda era carne. A última imagem apunhalou-me de frente. Aquela pesada mulher acariciava os cabelos ainda ralos de um bebê. Um órfão de memórias de sangue. Ela cantava quase que para si mesma uma promessa de proteção. Amaria aquele ser como se fosse fruto de sua terra fértil. A infelicidade mesclou-se ao amor e transformou-se em eternidade. Vida longa aos que não morreram de alma. 

domingo, 13 de outubro de 2013

Pedais líquidos

 Os pedais corriam soltos pela avenida, acariciando ferozmente o asfalto que esquentava com o contato. A poeira vinha em espirais e o calor vinha em ondas que dificultavam a visão. Até então, nada disso importava. Ele continuava a pedalar, o rosto avermelhado pela exposição àquele dia de verão no litoral. Suas sardas triplicavam a cada metro percorrido, o suor deslizava pelo seu rosto com lambidas mornas e espaçadas. Não havia tempo a perder. Projetou o corpo para frente, os olhos espremidos para tentar visualizar melhor o que estava pelo caminho, as mãos apertando forte a borracha dura, os pés em quase círculos, as gotas pingando, o cabelo empapado, o vento surrando seu rosto com força, mais força nos pedais, carros com suas buzinas incansáveis, sinais de trânsito inúteis, a velocidade aumentava, mais suor, dor na lombar, os pés descontroladamente ligeiros, uma luz forte ofuscando seu olhar flamejante. Uma poça se formou após o barulho oco que se ouviu. O suor transparente deu lugar à vermelhidão vital que então se esvaiu em curiosidade dos transeuntes daquela cidade qualquer. Menos um. 

sábado, 5 de outubro de 2013

Insolitus

 Um banco vermelho no meio da praça denunciava as ilusões filtradas pelos próprios olhos. Ali, aquele banco, aquela vermelhidão indecente, era o único ponto de cor do ambiente. Ao redor, apenas folhas secas salpicadas em cima da grama queimada de sol, de uma cor ocre e das mais variadas formas, como rudes lembranças de um passado distante. 
 Crianças brincavam em preto e branco, em uma espécie de languidez eterna, que fazia doer o âmago por antecipação. Suas brincadeiras tão sem propósito faziam ecoar risadas tristes e ilusórias que invadiam os sentidos dos poucos presentes. Uma mulher olhava essas crianças com uma careta de preocupação maternal, limpando delicadamente o suor de sua tez com um lenço que outrora fora branco - agora é tão amarelado quanto os dentes do homem que a observava. Ele conseguia, de forma discreta e invisível, analisar cada impulso elétrico que fazia seu corpo tomar viço. Ele a olhava, com a boca salivando, a língua percorrendo seus próprios lábios secos pela bebida que ele tomava a grandes goladas de um recipiente metálico com um símbolo preto desenhado, como se fosse a união de pequenas aranhas com as patas quebradas. Um sorriso se formou em seus lábios sujos como um beco abandonado, escuro como sua alma petrificada. 
 De longe, uma câmera memorizava os passos do voyeur de terno preto e um cravo no rebuço. Uma câmera que piscava os olhos a cada soprar do vento quente, em uma dança sonolenta e atenta de quem já não aguenta mais a solidão. Sacudiu as fotos que saíam da máquina e guardou-as na pasta de couro. Um riso foi engolido, assim como sua fé inexistente.
 Eu olhava todos enquanto levava o copo d'água à boca macia, silenciosa e rubra. Guardei o bloco de anotações. Nomes anotados, fantasmas criados nesse jogo de adivinhação. Nesse jogo de espelhos, é melhor esquecer que a observação é ato constante.