terça-feira, 14 de abril de 2015

Conveniência

 O soco acariciou o rosto e o sangue foi sentido feito presença metálica na ponta da língua. Levantou os olhos e ameaçou cair para trás, mas logo uma força quase sobre humana fez com que seus pés se fincassem fortes no chão gelado da sala. Ainda sentia a pele da mão dele passando por seu rosto e repetidas vezes sentia aquela dor como se tivesse sido a primeira vez. Os flashes se repetiam e o barulho martelava em sua cabeça em uma velocidade inimaginável, despertando a sensação de comer um alimento ácido, fazendo escorrer dentro da boca a saliva assim que sua língua se levantava e se retraía de nervoso. O calor do momento lhe dava forças e ela continuava. A cada soco imaginava uma carícia e não arredava pé. Implantaram em sua mente que a dor era necessária, que sem dor não haveria progresso, mas esqueceram - por pura conveniência - de que a dor não poderia se confundir com amor, o grito não deveria se confundir com cuidado e as cercas não poderiam ser consideradas proteção. 

domingo, 5 de abril de 2015

O outro lá fora

 Ela se sentou na cadeira mais próxima da escada com poucos degraus. Ao redor, quadros delicados, bibelôs singelos, flores coloridíssimas em garrafas esverdeadas, Coltrane tocando ao fundo, umas taças de vinho tinto e cheirinho de chá de camomila eram sentidos. No balcão toda sorte de quitutes era vista: bolos de fubá com erva doce, doce de leite em pequenos cubos, raspas de laranja cristalizadas e cachaça para quem quisesse se servir. Apreciava esses lugares em que a simplicidade dava o ar da graça e a sofisticação ficava por conta da clareza e do silêncio. Do outro lado da rua, uns cachorros caminhavam atrás de uma mulher muito suja e solitária. Eles iam sem se questionar o por quê e ela ia sem olhar para trás. Sentiu um calafrio percorrer a espinha e respirou. Engraçado quando é possível sentir ser o outro por um segundo e então apreciar ser o que se é de fato sem reclamar. Algumas visões são tão empáticas e egoístas - por que não? - que sair de si por um segundo é estar no inferno e voltar. Respirou e voltou a si e às taças bem dispostas, aos pratos cheios de comida e aos livros arrumadinhos na estante perto da saída. Era bom voltar a ser quem nunca havia sido até notar quem não era. 

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Deixar

 Precisamos nos livrar do que é pesado e rouba o viço da face. Livrar-se de algo ou de alguém não é simples e nesse caso tampouco sinal de descarte plástico e indolor. Podem te acusar de egoísmo, mas estar com alguém que te suga mesmo sem querer a todo momento é estar sob um redoma infectada e sair é a opção mais viável para quem já tentou de tudo. A vida é linda, veja. Ela é linda, sinta. Ela espera que você a viva enquanto toca o corrimão e sente sua textura, espera que exista para contemplar as múltiplas cores do céu ao longo do dia, ela deseja que você se permita deixar de fazer algo que não te faz bem. Faça. Somos um tantinho responsáveis pelas atitudes que temos com os outros, é verdade, mas somos muito responsáveis pelas atitudes que nos mantém felizes. É tudo simples, descomplique.  Estruture-se e multiplique sorrisos, porque é bom demais viver nesse mundo recheado de cores, intensidades e notas. Liberte-se.