segunda-feira, 28 de abril de 2014

Nu oprimido

 Despidos de credos e salamaleques, o homem nu anuncia o que está por vir. Não se prende ao simples passado, nem se apega ao futuro, ele é. Embora preveja esse futuro, ele não está plenamente consciente disso. É matéria se desfazendo no ar, é água evaporando, é incenso queimando, é sempre uma ação acontecendo. A-c-o-n-t-e-c-e-n-d-o. O homem nu pode segurar uma xícara de café e derrubá-la sem se queimar - é imune ao que é cotidiano, mas ainda assim o constrói. Ele pode ser coerentemente incoerente. Gosta da sensação levemente gelada ao encostar suas nádegas no banco do metrô, aprecia o toque suave e acidental de um desconhecido em suas costas quentes, se delicia com o vento indo e voltando na pequena abertura feita ao caminhar. É pintura. É sentimental. É mal educado. Não é civilizado. Incomoda. Seus pelos pubianos são uma afronta aos olhos da multidão. Cubra-se! Cubra-se imediatamente! Ele não, não recua jamais. Continua, de frente, com a fronte desnuda, o corpo à flor da pele, somente encoberto pela repressão. E quanto mais oprimido, mais livre. 

sábado, 26 de abril de 2014

Para Marluci

 Engraçado como a vida nos inclina para frente e surpreende. Ali, naquele horário, sem planejar, eu te conheci. Conheci em poucos minutos uma parte ínfima de uma vida cheia de verdades, sofrimento, superação, idas, vindas, sorrisos, criações, caminhos. Você, ali, aberta para a vida. Eu também. Me chamou de imediato para uma visita à sua casa, em cima do meu cinema preferido no momento. Momentos. Ali, nos seus olhos quase cegos eu vi tanta lucidez e tanta clareza que somente os sentidos eram capazes de transmitir. Seu medo de perder aquele sentido se mesclava à libertação do próprio corpo, cansado e alegre, antigo e renovado, seu e do mundo. Naquele momento eu era Marluci. Era Marluci no sorriso de canto de boca, nas palavras doces, nas tiradas engraçadas e ácidas, nos gestos que desenhavam imagens no ar, no cheiro de mãe, de vó, de tanto amor que não cabia em um só banco. Era Marluci na permissão. Era Marluci de Alagoas que passou fome, que estava casada havia 65 anos, que ia ao mercado todo dia comprar pão, que sentava ao entardecer na praça, que tinha quatro filhos, dois netos e morava no oitavo andar. "Não vai esquecer de mim, hein." Jamais. Você agora é tão parte de mim quanto sou parte do mundo. Dotada de influências, resgato meu eu em você. Você. E não "senhora" como costumam dizer. A cortina da cerimônia se rasgou assim que as primeiras palavras foram trocadas. Sua voz é mais um eco na minha cabeça inundada de carinho. 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

The scarlet letter



Voltado para dentro
em respirações oscilantes
manifestações faciais
sorrisos constantes
gozo não comedido
traduzido em notas escarlates
de rubor efêmero
ali você é, e não parece
a essência de si mesmo

terça-feira, 22 de abril de 2014

Aweté

 Conexões transcendentais, cristais multicoloridos, terra seca, terra molhada, água que cai de cima, que corre de lado, água que preenche o corpo e nutre a alma de quem molha os pés no riacho envolto em cascalhos e pequenas flores recém nascidas. Rosto lavado, suor que escorre pelo corpo simples da labuta diária, mas que não esquece de sorrir ao ver no nada alguma coisa. Aipim no forno a lenha, peixe enrolado na folha de bananeira, pé de alface...comer com as mãos. E o cheiro de vida se alastra pelos olhos ambíguos e gostosos de serem vistos. Harmonia em último grau de agradecimento. 

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Um segundo a mais

 O sol entrava pela porta e se apresentava, radiante, sobre nossos corpos nus e entrelaçados. O cheiro de suor era fluido e fazia com que meu corpo se contorcesse para perto do seu mais um pouco. Mãos, pés, barrigas, bocas, línguas, mentes, girassóis e vinho. Ainda havia areia entre meus dedos, havia gosto de álcool na minha boca, eu podia ver o farol alto vindo em nossa direção,  podia sentir seu corpo sobre o meu, seus dedos entre meus cabelos, seu olhar deslizando sobre meu rosto, sua música penetrando em meus ouvidos, assim como o barulho das ondas preenchia meu ser. Era um dia. E não mais um dia. Era uma dádiva. 

terça-feira, 15 de abril de 2014

Ode ao rascunho

 Estava caminhando com duas sacolas pesadas, uma em cada mão, na volta do trabalho para casa. Minhas mãos escorregavam e a garoa caía fina sobre minha pele quente. Não me importava em estar molhada, apesar de sentir um leve desconforto quando o vento sussurrava perto e me causava calafrios. Queria apenas que cada passo fosse um passo a menos, e de fato era. Pensando assim eu me mantinha em linha reta, embora meu corpo pendulasse ora para a direita, ora para a esquerda, em uma tentativa de equilibrar o peso. Tentativa. Ten-ta-ti-va. T-E-N-T-A-T-I-V-A. Pronto, era isso. Era tudo uma tentativa. Quero dizer, a vida, as pessoas, os sonhos, as atitudes, as linhas escritas, as velas acesas, tudo. De supetão, ficou claro. Eu tilintava por dentro, em soluços risonhos e minhas águas se acalmavam. Sentia paz e euforia. As combinações eram possíveis, das mais comuns às não imaginadas e inimagináveis. Queria tudo. Queria ser tudo. Sentir tudo. Meu tudo era nada. Meu tempo não existia. O espaço era o que eu desejava que fosse. Um brinde à imaginação. 

quinta-feira, 3 de abril de 2014

(Para)fluxo

No caminho para casa me deparei com o ir e vir desconhecido. Um homem trôpego, com uma sacola plástica vermelha na mão, agachava de metro em metro para revirar o lixo jogado na rua. Enquanto ele se movia para frente – acreditava eu que assim era o fluxo -, eu duvidava. Estaria ele andando para frente ou para trás?
Continuei meu fluxo descontínuo de passadas descompassadas. Sem óculos, eu visualizava apenas sombras e luzes duplicadas. As sacolas brancas jogadas no canto eram gatos, os homens eram mulheres, as mulheres eram paredes, os sorrisos eram espumas ácidas, a aproximação uma afronta, os letreiros lembravam um bordel qualquer.
Minha sobrancelha direita arqueada dizia tudo e não dizia nada. Para quem? Quem passasse nem repararia na minha vista torta, no meu tronco deslocado, na minha fronte franzida. Eu era toda tensão. Cada pulsação era uma tremedeira quietamente imprecisa. Os calafrios se intensificavam da nuca até a parte interna da coxa. Filetes quentes de suor emanavam. Gotas escorriam do rosto e caíam entre os seios desnudos. Desnudos? Estava nua. No meio da calçada, descalça. Minha vestimenta de suor corria meu corpo embalando-o em rancor de indecisão. A cor cinza dos muros, as propagandas descoladas, o andar desengonçado do bêbado, a sujeira no canto da porta do vizinho, o liquidificador estridente, a caneta estourada que escorria pela bolsa marrom, o sangue que vinha de dentro para fora até a panturrilha fatigada, as olheiras lilases, a barba mal feita, os dentes tortos, a nota fora de tom, a cor misturada e apagada na tela, a bateria descarregada, as formigas lentas indo vindo voltando pelo armário branco da cozinha escura, a fresta da porta mal encostada, o sol batendo nos olhos de manhã. Tudo me causava incômodo e prazer, gostava do mal arrumado, do mal acabado, do inacabado, do amorfo, do vazio, do estufado.
Estava nua. Respiração entrecortada. Suor. Lençóis molhados. Sol batendo na cara. A fresta da porta deixando um cheiro acre penetrar o ambiente. Um bordel qualquer. Eu era a puta silenciosa. A puta cega. A puta que se contorcia de dor. A puta efêmera. A virgem brumosa. A virgem falsa. A virgem que se escondia em si mesma. Eu era o que dissesse ser. Eu seria.

Tic.Tac.Tic.Tac. Tamanha prepotência convencionar o convencionado através do som que ele sequer possui. Percepção inútil. Mais inútil era mirar o relógio às três da tarde e constatar que ainda havia tempo de sobra. Havia o tempo e ele não era aquele caminho percorrido pelos ponteiros – eu não o possuía também. Havia o tempo e ele se esvaía entre meus poros dilatados. Havia sim, e eu o perdia, algumas vezes pouco a pouco, outras numa torrente só. Não lamentava. Adiantaria perdê-lo mais um pouco em troca de algumas cascatas para molhar a face? Não, não e sim. Talvez. A possibilidade não é dádiva alguma, ela é uma escolha mental, é uma abertura de espírito, uma insanidade momentânea, um devaneio de fim de dia. É permitir-se ser o que não se é, no presente. O passado é pó, é pó desfeito, é espirro que se foi na cara alheia, é incômodo que se limpa com a palma da mão e se sacode para os lados. O passado pode ser, não necessariamente foi. Aos amargurados eu vos digo: reinvente-o. Quantas vezes forem necessárias. O passado é um monte de esterco que só serve para mudar e mudar e mudar e ser jogado no lixo outra vez. É preciso se jogar no lixo, aquela casca fina e quebradiça. É preciso morrer. É preciso nascer da morte inexistente e se esgueirar pelas beiradas do precipício. O risco é. O ser humano pode ser.