sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Cachoeira

 Dedos percorrem as cordas do violão em seu colo, enquanto filetes de água cascateiam por meus ombros desnudos e pintados pelo sol da manhã. O que vejo é mais do que minhas palavras arbitrárias poderiam transmitir, é a vida em movimento, a arte em vida, o movimento é arte. Entre notas sibiladas e sorrisos de desconcerto eu me refaço em espirais de paz. Minha vontade de descobrir o mundo é mais forte que os pés que me mantém presa ao chão, o cheiro de terra batida inunda meus sentidos e me tira o fôlego. A vida está aí, batendo na porta, esperando um sinal de mala arrumada para fugir do que não pertence a mim. A natureza se abre para mais um espetáculo. O vento ulula longe e as horas passam sem serem notadas. Não há mais tempo, nem espaço, nem corpos. Há sinestesia. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Efemeridade retalhada


 Retalhos já não faziam mais sentido na caixa oca de fecho dourado. Eram uma cachoeira de cores, texturas e cheiros. Mofo, poeira, ácaros - tudo aquilo de velho fazia seu nariz se contorcer e emitir sons de desconforto intenso. A dificuldade toda consistia em conseguir se desfazer de todas aquelas partes inúteis e disformes que um dia constituíram uma unidade efêmera, é claro, mas ainda assim era, ou parecia, sólida. 
  Jogou-os sobre o chão sem precisar espalhá-los, deslizaram tão maciamente para os lado e para baixo e caíram feito flocos de passado. Sua mão em forma de pinça escolhe-os todos, um por um, e a cada escolha os jogava novamente na caixa, que logo voltou a se preencher. Tirava, recolocava, jogava, se recompunha, espalhava, juntava, escolhia, assoprava, levantava, sentava novamente insatisfeita. Seria possível ser tão difícil desapegar-se do que já subtraía? De tanto subtrair se sentia minguada, magra, suas olheiras pesavam, sua palidez assustava até os pombos que pousavam na janela cheia de marcas de dedos. 
  A janela, tão pouco usada, tão suja de seus dedos que tocavam o vidro na tentativa de tocar o céu e suas nuvens algodoadas, repentinamente estalou. Seu coração palpitou e quase saiu pela boca contorcida de surpresa. 
  Nas semanas seguintes sua janela, a única coisa que a separava das nuvens, de centímetro a centímetro foi lambida por uma rachadura antes tão ínfima e desconhecida que não causava receios. O vento estufou o vidro e o partiu em pedaços progressivamente. Seus olhos não acreditavam no que não viam mais. Ardiam, arranhados pela brisa forte. Tão próxima das nuvens, tanto tempo perdido, e os retalhos se foram com ela janela a fora.