sábado, 15 de fevereiro de 2014

Efemeridade retalhada


 Retalhos já não faziam mais sentido na caixa oca de fecho dourado. Eram uma cachoeira de cores, texturas e cheiros. Mofo, poeira, ácaros - tudo aquilo de velho fazia seu nariz se contorcer e emitir sons de desconforto intenso. A dificuldade toda consistia em conseguir se desfazer de todas aquelas partes inúteis e disformes que um dia constituíram uma unidade efêmera, é claro, mas ainda assim era, ou parecia, sólida. 
  Jogou-os sobre o chão sem precisar espalhá-los, deslizaram tão maciamente para os lado e para baixo e caíram feito flocos de passado. Sua mão em forma de pinça escolhe-os todos, um por um, e a cada escolha os jogava novamente na caixa, que logo voltou a se preencher. Tirava, recolocava, jogava, se recompunha, espalhava, juntava, escolhia, assoprava, levantava, sentava novamente insatisfeita. Seria possível ser tão difícil desapegar-se do que já subtraía? De tanto subtrair se sentia minguada, magra, suas olheiras pesavam, sua palidez assustava até os pombos que pousavam na janela cheia de marcas de dedos. 
  A janela, tão pouco usada, tão suja de seus dedos que tocavam o vidro na tentativa de tocar o céu e suas nuvens algodoadas, repentinamente estalou. Seu coração palpitou e quase saiu pela boca contorcida de surpresa. 
  Nas semanas seguintes sua janela, a única coisa que a separava das nuvens, de centímetro a centímetro foi lambida por uma rachadura antes tão ínfima e desconhecida que não causava receios. O vento estufou o vidro e o partiu em pedaços progressivamente. Seus olhos não acreditavam no que não viam mais. Ardiam, arranhados pela brisa forte. Tão próxima das nuvens, tanto tempo perdido, e os retalhos se foram com ela janela a fora.

Nenhum comentário:

Postar um comentário