sábado, 26 de abril de 2014

Para Marluci

 Engraçado como a vida nos inclina para frente e surpreende. Ali, naquele horário, sem planejar, eu te conheci. Conheci em poucos minutos uma parte ínfima de uma vida cheia de verdades, sofrimento, superação, idas, vindas, sorrisos, criações, caminhos. Você, ali, aberta para a vida. Eu também. Me chamou de imediato para uma visita à sua casa, em cima do meu cinema preferido no momento. Momentos. Ali, nos seus olhos quase cegos eu vi tanta lucidez e tanta clareza que somente os sentidos eram capazes de transmitir. Seu medo de perder aquele sentido se mesclava à libertação do próprio corpo, cansado e alegre, antigo e renovado, seu e do mundo. Naquele momento eu era Marluci. Era Marluci no sorriso de canto de boca, nas palavras doces, nas tiradas engraçadas e ácidas, nos gestos que desenhavam imagens no ar, no cheiro de mãe, de vó, de tanto amor que não cabia em um só banco. Era Marluci na permissão. Era Marluci de Alagoas que passou fome, que estava casada havia 65 anos, que ia ao mercado todo dia comprar pão, que sentava ao entardecer na praça, que tinha quatro filhos, dois netos e morava no oitavo andar. "Não vai esquecer de mim, hein." Jamais. Você agora é tão parte de mim quanto sou parte do mundo. Dotada de influências, resgato meu eu em você. Você. E não "senhora" como costumam dizer. A cortina da cerimônia se rasgou assim que as primeiras palavras foram trocadas. Sua voz é mais um eco na minha cabeça inundada de carinho. 

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