quinta-feira, 3 de abril de 2014

(Para)fluxo

No caminho para casa me deparei com o ir e vir desconhecido. Um homem trôpego, com uma sacola plástica vermelha na mão, agachava de metro em metro para revirar o lixo jogado na rua. Enquanto ele se movia para frente – acreditava eu que assim era o fluxo -, eu duvidava. Estaria ele andando para frente ou para trás?
Continuei meu fluxo descontínuo de passadas descompassadas. Sem óculos, eu visualizava apenas sombras e luzes duplicadas. As sacolas brancas jogadas no canto eram gatos, os homens eram mulheres, as mulheres eram paredes, os sorrisos eram espumas ácidas, a aproximação uma afronta, os letreiros lembravam um bordel qualquer.
Minha sobrancelha direita arqueada dizia tudo e não dizia nada. Para quem? Quem passasse nem repararia na minha vista torta, no meu tronco deslocado, na minha fronte franzida. Eu era toda tensão. Cada pulsação era uma tremedeira quietamente imprecisa. Os calafrios se intensificavam da nuca até a parte interna da coxa. Filetes quentes de suor emanavam. Gotas escorriam do rosto e caíam entre os seios desnudos. Desnudos? Estava nua. No meio da calçada, descalça. Minha vestimenta de suor corria meu corpo embalando-o em rancor de indecisão. A cor cinza dos muros, as propagandas descoladas, o andar desengonçado do bêbado, a sujeira no canto da porta do vizinho, o liquidificador estridente, a caneta estourada que escorria pela bolsa marrom, o sangue que vinha de dentro para fora até a panturrilha fatigada, as olheiras lilases, a barba mal feita, os dentes tortos, a nota fora de tom, a cor misturada e apagada na tela, a bateria descarregada, as formigas lentas indo vindo voltando pelo armário branco da cozinha escura, a fresta da porta mal encostada, o sol batendo nos olhos de manhã. Tudo me causava incômodo e prazer, gostava do mal arrumado, do mal acabado, do inacabado, do amorfo, do vazio, do estufado.
Estava nua. Respiração entrecortada. Suor. Lençóis molhados. Sol batendo na cara. A fresta da porta deixando um cheiro acre penetrar o ambiente. Um bordel qualquer. Eu era a puta silenciosa. A puta cega. A puta que se contorcia de dor. A puta efêmera. A virgem brumosa. A virgem falsa. A virgem que se escondia em si mesma. Eu era o que dissesse ser. Eu seria.

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